Luto:
Viver Apesar de Tudo
Por
Odair José Comin
Viver
é também saborear o gosto acre da morte, do luto. Não
apenas da morte propriamente dita, mas das mortes transfiguradas
nas inúmeras perdas que sofremos durante toda nossa
existência. O menino que fui, morreu para o adolescente
que chegou, que morreu para o jovem, para o adulto.
Enfim, o dia de ontem morreu para o dia de hoje, o segundo
anterior morreu para o segundo quem vem. O passado morre
para o presente, e se o luto não for elaborado, viveremos
eternamente presos ao instante anterior, onde a vida
já deixou de existir, já deixou de ser uma companhia.
Viver é uma cidade sem muralhas, dizia Epicuro. Nesta
cidade, estamos sujeitos a tudo: a dor e o prazer, a
vida e a morte.
A
vida e a morte, são como dois bailarinos que sincronicamente
fazem juntos todos os seus movimentos; passos, gestos
e sutilezas. Dançam juntos a mesma música, a mesma coreografia.
A vida enquanto presente, leva uma vantagem de milésimos
de segundos da morte, enquanto passado. Porém, a linha
é tão tênue e sutil, que não percebemos a diferença.
Por vezes, esse luto mais cotidiano, ordinário, passa
desapercebido, não damos atenção porque aparentemente
são segundos banais. Entretanto, quando nos damos conta,
estamos com 70, 80 anos de idade e em um leito de morte.
Só então é que teremos a sensação de não termos vivido,
da vida ter se esvaído como água por nossos dedos. Ficamos
tão agarrados ao passado, tentando pegar o abstrato,
ver o invisível, que não nos damos conta, de que o presente
fluía com todas as suas possibilidades. Mas, infelizmente
“não estávamos lá” para usufruir. Só agora que estamos
na eminência da “última morte”, é que percebemos que
sem a morte não há vida, e que aceita-la, significa
a possibilidade de uma nova vida que se renova a cada
instante.
A
todo o momento há falta. Essa falta, de qualquer forma
pode trazer dor, e quando não aceitamos, pode nos trazer
sofrimento. E pelo fato de não ser aceitar, há luto.
Com isso, temos a cômica, ou trágica imagem do cachorro
correndo atrás do próprio rabo. O real nos nega o objeto
de desejo, nós negamos que nosso desejo foi negado pelo
real, o que fatalmente resulta em dor. Nos revoltamos
contra a vida, e a achamos injusta, sofremos ainda mais.
A
impressão é que a realidade é o grande carrasco do desejo.
E na verdade o é. Todavia, a realidade também é bondosa
como uma mãe que às vezes é dura sim, mas que nos ensina
a viver, a amar, a usufruir o que a vida tem a nos oferecer,
apesar da morte, apesar da perda. A realidade às vezes
concede nossos desejos e se não estes, outros, e com
o tempo, aprendemos que também podemos ser felizes com
estes “outros”. A felicidade não depende das perdas,
mas sim do que conseguimos ganhar, e é isso o que importa.
Nada
mais certo e normal que a morte, tudo o que tem um início,
fatalmente terá um fim, e todos sabemos disso, porém
preferimos nos enganar pensando que tudo é eterno. Meu
namoro, meu casamento, meu cachorro, meu emprego, meus
pais, meus avós, eu mesmo; todos eternos e perde-los
não estava no escript. O trabalho de luto é aprender
a dizer sim, tanto para a vida, quanto para a morte;
para os ganhos e para as perdas.
Vida
Breve
Uma
vida não é senão um breve instante na eternidade, independente
do quanto dura esse instante, é imprescindível que seja
bem vivido, do contrário, a vida será um hiato, um vazio
sem sentido. Dentro de cada vida, muitas outras vidas
perfilam, vidas que a todo instante deixam de ser, deixam
de existir, porque outras estão à espera. E cada finalização
dessas breves existências, nos trazem o luto e sua conseqüente
e necessária elaboração. Este que nos possibilita o
desapego, a libertação de uma das mortes de nossa vida,
para que novas possam nascer.
Aquele
morreu quando estava para aproveitar a vida, desgostoso
por ter sido tão breve e pouco vivida, ouve-se o comentário.
Sendo assim, o que se lê é: aquele nunca aproveitou
a vida! Sua existência correu rápida e descolada de
si mesmo, e dela, não se aproveitou ou pouco se aproveitou.
E porque até então não se pôde aproveitar? Por certo
temos aqui a ausência do bem viver, portanto a dificuldade
em morrer. Dificuldade, porque achamos que a vida não
foi suficiente, queríamos mais, pois não nos sentimos
preenchidos.
Este
morreu feliz, conseguiu realizar seus sonhos. Portanto,
este morreu completo, e talvez com uma morte bem aceita.
Quando vivemos mal, a morte nos tira a vida, e a perda
é vista como um roubo. Quando vivemos bem, a morte é
apenas o último estágio da vida, a perda pode até deixar
um vazio, mas não a revolta, não o sofrimento sem tréguas.
Este por certo, perceberá que a vida continua, mesmo
após uma perda ou morte. E na eminência do próprio fim,
se liberta por si mesmo da vida que tanto lhe proporcionou,
e sendo ele sabedor deste fim, parte tranqüilo e sereno.
“A
morte só nos tomará o que quisermos possuir”, dizia
Sponville, e Freud complementa: “não sabemos renunciar
a nada. Apenas sabemos trocar uma coisa por outra”.
E isso, a realidade pode nos dar. Posso amar outros,
ser outro, ter outros. Constantemente travamos uma luta
entre nossos desejos, amores ou posses, e a realidade
– os impedimentos para alcançarmos tudo o que queremos
– Muitas vezes, o real é mais forte, e perdemos essa
briga.
O
luto pode acontecer tanto do que tínhamos e perdemos,
como: emprego, empresa, casamento e morte de um ente
querido. Quanto do que esperávamos ter, mas que até
o momento não conseguimos, como uma promoção, o carro
que não conseguiu comprar, uma paixão que nunca foi
correspondida ou ganhar o prêmio na loteria. E tão maior
for nosso apego ao que temos ou ao que poderíamos ter,
tão maior será o sofrimento caso perdemos. Elaborar
o luto é se libertar do desejo, quando ele não pode
ser realizado. Isso não serve para dizer que não devemos
correr atrás de nossos sonhos, ou viver intensamente
nossas paixões e que não devemos empreender nosso máximo
para conseguir, mas sim, para dizer que a vida continua
apesar de não ter conseguido. Acredite, o mundo é generoso.
A
dor do luto
O
luto como já dito, carrega em si a dor, viver é estar
em constante luto e elaboração do mesmo. Essa elaboração
é a ponte que nos leva da dor ao prazer. Luto é aprendizagem,
é experiência. O luto nos torna humanos, que sabemos,
somos mortais. Portanto, a morte é nossa fiel amiga
e não podemos fugir dessa fidelidade. Ela pode ser ludibriada,
se postergada, atrasada, mas nunca deixará de vir ao
nosso encontro, como disse ela é fiel e cumpre o que
promete, cedo ou tarde. Ela nunca deixa de estar presente,
para nos mostrar como num espelho, nosso corpo a todo
tempo desnudado pelo real. O real é a própria morte,
são as perdas, os fracassos, as decepções, as frustrações,
as amputações do desejo. Entretanto, o real nos pega
mesmo a contra gosto, e por vezes nos mostra exatamente
o contrário, que tudo tem um fim, que tudo isso não
passa de um conto de fadas. O castelo de cartas cai
por terra. Dor, sofrimento, luto.
A
elaboração do luto é a aceitação da realidade tal como
ela é, nua e crua. É aprender a viver com a ausência,
com uma perda, buscando algo novo que nos vá preencher.
Nunca é claro, o mesmo preenchimento, apenas um novo.
O luto é da morte, não da vida. O que morre são partes
de nós, o todo continua vivo. Assim como, a cada dia
milhares de células morrem em nosso corpo, porém, milhares
nascem para manter o todo nas melhores condições possíveis,
e pelo maior tempo possível.
Distância
próxima
Se
a morte, ou a finitude de tudo é o que de mais certo
termos, porque não a aceitamos como natural? Será a
consciência do eterno? De que somos imortais? De que
vivemos como se nunca fossemos morrer? De que a morte
só ocorre com o outro? As explicações se multiplicam.
De alguma forma fugimos desesperadamente da dor, porém,
vez ou outra inevitavelmente caímos em seus braços como
presas indefesas. Indefesos porque não somos preparados
para as “armadilhas” da vida, para as perdas e mortes.
Porque a dor é evitada desde cedo em nossa educação,
e vem sendo cada vez mais evitada, pelos pais, pela
escola, mídia, ciência, etc.
Quanto
mais conhercemos algo, mais teremos controle. Quanto
mais nos conhercemos, mais senhores de nós mesmos seremos.
Com a dor não é diferente, e na medida em que entramos
em contato, conhecemos, com isso, mais facilmente com
ela lidaremos. Como ao longo dos tempos vem se criando
um distanciamento da dor, da morte, quando acontece
nos amedronta, nos machuca a porto de perdermos o sentido
da vida, a ponto da morte do outro nos matar.
A
elaboração do luto está diretamente ligada à ideologia
do ter para ser. Se para ser teremos que ter, quando
perdemos, deixamos de ser. Isso nos causa dor, isso
nos tira a identidade, nos anula, e o gosto da morte
permanece, porque é como se nós mesmos tivéssemos morrido.
Eu só era alguma coisa porque tinha minha mãe, meu marido,
meu emprego, meu carro, meu dinheiro. Perdeu-se a identidade,
então nos sentimos sozinhos e enfraquecidos para aceitar,
mesmo o que já era previsto. Claro poderá ter vindo
num momento inesperado. Morreu quando recebeu alta no
hospital; morreu jovem, ia para uma festa; me deixou
logo agora quando estava tudo bem; agora que eu ia receber
uma promoção fui demitida. Tanto a morte quanto às perdas
são imprevistas, mas isso também é sabido.
Ouvimos
a fala, a vida é breve, posso sair daqui agora e ser
atropelado. Amanhã poderei não mais estar aqui. Temos
a consciência da brevidade e da incerteza, porém não
a vivemos, não a aceitamos enquanto possibilidade real,
por isso sofremos, por isso o luto não é elaborado.
Somos apenas teóricos da morte, da perda. Na prática,
só a vida, só os ganhos, apenas o que permanece é bem
aceito. A verdade é que esses modelos extrapolam para
os diferentes campos de atuação. Não vivemos o que pensamos
ou desejamos, vivemos o que as circunstâncias nos levam
a viver e por elas somos comandados, como se as circunstâncias
não pudessem ser mudadas.
A
vida nos treina para a morte todos os dias, pequenas
e grandes perdas, algumas mais fáceis de serem elaboradas,
outras mais difíceis. A vida nos dá essas possibilidades,
porém nossos modelos de educação e educadores, fazem
o possível e o impossível para evitar que entremos em
contato. Desta forma, enquanto tivermos alguém para
nos proteger viveremos bem, mas talvez fracos. Quando
dependermos apenas de nós mesmos, a dor será inevitável
e tomará proporções fantasiosas, abrindo feridas que
não cicatrizarão tão facilmente, gerando sofrimento.
Assim, a morte não trará ensinamentos, e nada será,
além do fim. A vida perde o sentido, a vida pára, e
o indivíduo vive porque rumina um passado encantado.
Um passado onde ela ainda estava “inteira”, aparentemente
sem perdas.
A
impressão é que a todo o instante as pessoas precisam
ser enganadas, e clamam por isso. É preferível que a
verdade seja camuflada, esteja envolvida pelo mel da
retórica para que assim possa ser digerida com tranqüilidade,
caso contrário, a verdade é repelida como a um ladrão
insaciável. E a metáfora é propositalmente aqui colocada,
porque a impressão é que a verdade pode lhe roubar algo
que lhe pertence. Com isso, aprendemos a não falar o
que deve ser falado, mas sim, o que o outro quer ouvir.
Uma notícia de morte é cercada de inúmeros cuidados
e precaução, dependendo do grau de dependência ou da
forma que este lida com tais situações. Sim deve se
ter cuidados, a questão é que se perde ai uma grande
oportunidade de ensinar e aprender, sobre as perdas
da vida. Se este não consegue lidar com a morte, como
elaborará o luto? Morremos não só pelo fato de nosso
coração parar de bater, morremos também por viver como
se a morte não fizesse parte da vida, porque paramos
no tempo, no tempo em que a perda ainda não havia acontecido.
O
vocabulário é vasto, porém as palavras não são suficientes
para reparar uma perda, é preciso vive-la. Perante a
dor somos iguais. É certo sentir dor, é certo chorar
e até mesmo sofrer, assim como também é certo continuar
vivendo. Numa relação de amor, a perda sempre causará
dor, devemos experimentar essa dor. Sim, ela é minha
e agora a conheço e na próxima perda a reconhecerei,
e dela me fortalecerei. Uma dor breve, como breve foi
a existência do que perdi, como breve é minha vida,
que por mais breves que sejam os momentos felizes, que
possam ser muitos. Já disse Sêneca, “não é curto o tempo
que temos, mas dele muito perdemos”. Portanto, aproveitemos
o máximo nosso tempo. Será a vida breve, ou nós é que
assim a fazemos? Será que a vida nos falta ou a esbanjamos
sem critérios? A vida é como um negócio, como um pedaço
de terra onde se pode plantar. Alguns, quando estão
de posse destes, fazem produzir e colhem muitos frutos,
enquanto outros no mesmo lugar, nada produzem além da
decepções.
O
bem viver nos falta, e por isso nos agarramos desesperadamente
em pedaços de vida, como famintos a uma migalha de pão.
Ora, quando o que temos são migalhas, e nada além, ah!
então precisamos repensar nossa existência, buscando
novas fontes, novas possibilidades. O que é pior: morrer
ou viver como se estivesse morto? Morrer é natural,
viver com ausência de vida, não. Tal pessoa morreu,
nada podemos contra a morte, portanto que vivamos a
favor da vida.
Gratidão
na morte
Diante
da morte do outro nos entristecemos, sofremos e choramos,
não pelo morto, mas por nós mesmos, pela falta que ele
nos fará. Se pensarmos que a morte é o nada, é o vazio
absoluto, pelo o que choramos? Se pensarmos no
vazio que a morte trouxe, pelo o que choramos? Para
a primeira questão talvez não haja solução, pelo fato
de não termos acesso. Para a segunda, a simples aceitação
de que um vazio foi deixado, porque o outro ocupava
sim um espaço dentro de nós, mas apesar disso, continuamos
vivos. E o que nos conforta, é que o outro teve seu
instante na eternidade e fez a diferença enquanto existia.
Mas que o nosso instante ainda não acabou, e clama por
ser bem aproveitado.
É
sábio aquele que elicia lembranças felizes do que foi.
É sábio e ao mesmo tempo feliz, aquele que agradece
o que, ou quem o influenciou para estar onde está. Tudo
o que não é, um dia pode ter sido, e por isso, fez parte
de nossa vida. Todas as nossas perdas, mortes, fracassos,
frustrações e decepções, fazem parte deste hall a ser
agradecido.
Tudo
é uma questão de escolha: o sofrimento da perda do que
um dia foi, o pesar por aquilo que nunca aconteceu,
ou, a lembrança feliz do que foi, do amor que por um
tempo preencheu de sentido nosso viver. À que se ter
gratidão pelo passado. Nem a morte, nem qualquer outra
possibilidade que potencialmente pode nos enlutar, é
capaz de anular o que já aconteceu, o que vivemos. A
gratidão nos faz regozijarmos com doces lembranças,
nos liberta do que está por vir e ilumina o que está
sendo. Claro está, que não queremos ressuscitar o passado,
nem tão pouco anular o sofrimento do luto. A gratidão
é o remédio que pode cicatrizar as feridas abertas pela
vida, pelas perdas da vida.
A
elaboração do luto não é a extinção do sofrimento, nem
tão pouco a gratidão se prestaria a isto. “Trata-se
de passar da dor atroz da perda, à doçura da lembrança”,
dizia Sponville. Ou seja, a própria gratidão, “que bom
que você existiu em minha vida”, “que bom eu ter ganhado
esse presente”, “que bom eu ter te amado e tu me amado”.
Elaborar o luto: aceitar o real e continuar, viver apesar
de tudo. Gratidão: lembranças doces, alegrias e amor.
Referências
Bibliográficas
FRANKL,
V. E. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo, Editora
Quadrante, 1989.
SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. São Paulo. Nova Alexandria,
1993.
SPONVILLE, A. C. Bom dia, angústia! São Paulo, Martins
Fontes, 1997.
__________, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, São
Paulo, Martins Fontes, 2000.
Artigo
publicado na Revista Psicologia Brasil
Nº 15 - Novembro de 2004.
*Odair
José Comin, Psicólogo, Hipnoterapeuta e Escritor
(OBS: Encontrei esse artigo no perfil da Fátima Corga no Facebook)
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