18 de maio de 2012

Luto: Viver Apesar de Tudo


Luto: Viver Apesar de Tudo

Por Odair José Comin

Viver é também saborear o gosto acre da morte, do luto. Não apenas da morte propriamente dita, mas das mortes transfiguradas nas inúmeras perdas que sofremos durante toda nossa existência. O menino que fui, morreu para o adolescente que chegou, que morreu para o jovem, para o adulto. Enfim, o dia de ontem morreu para o dia de hoje, o segundo anterior morreu para o segundo quem vem. O passado morre para o presente, e se o luto não for elaborado, viveremos eternamente presos ao instante anterior, onde a vida já deixou de existir, já deixou de ser uma companhia. Viver é uma cidade sem muralhas, dizia Epicuro. Nesta cidade, estamos sujeitos a tudo: a dor e o prazer, a vida e a morte.

A vida e a morte, são como dois bailarinos que sincronicamente fazem juntos todos os seus movimentos; passos, gestos e sutilezas. Dançam juntos a mesma música, a mesma coreografia. A vida enquanto presente, leva uma vantagem de milésimos de segundos da morte, enquanto passado. Porém, a linha é tão tênue e sutil, que não percebemos a diferença. Por vezes, esse luto mais cotidiano, ordinário, passa desapercebido, não damos atenção porque aparentemente são segundos banais. Entretanto, quando nos damos conta, estamos com 70, 80 anos de idade e em um leito de morte. Só então é que teremos a sensação de não termos vivido, da vida ter se esvaído como água por nossos dedos. Ficamos tão agarrados ao passado, tentando pegar o abstrato, ver o invisível, que não nos damos conta, de que o presente fluía com todas as suas possibilidades. Mas,  infelizmente “não estávamos lá” para usufruir. Só agora que estamos na eminência da “última morte”, é que percebemos que sem a morte não há vida, e que aceita-la, significa a possibilidade de uma nova vida que se renova a cada instante.

A todo o momento há falta. Essa falta, de qualquer forma pode trazer dor, e quando não aceitamos, pode nos trazer sofrimento. E pelo fato de não ser aceitar, há luto. Com isso, temos a cômica, ou trágica imagem do cachorro correndo atrás do próprio rabo. O real nos nega o objeto de desejo, nós negamos que nosso desejo foi negado pelo real, o que fatalmente resulta em dor. Nos revoltamos contra a vida, e a achamos injusta, sofremos ainda mais.

A impressão é que a realidade é o grande carrasco do desejo. E na verdade o é. Todavia, a realidade também é bondosa como uma mãe que às vezes é dura sim, mas que nos ensina a viver, a amar, a usufruir o que a vida tem a nos oferecer, apesar da morte, apesar da perda. A realidade às vezes concede nossos desejos e se não estes, outros, e com o tempo, aprendemos que também podemos ser felizes com estes “outros”. A felicidade não depende das perdas, mas sim do que conseguimos ganhar, e é isso o que importa.

Nada mais certo e normal que a morte, tudo o que tem um início, fatalmente terá um fim, e todos sabemos disso, porém preferimos nos enganar pensando que tudo é eterno. Meu namoro, meu casamento, meu cachorro, meu emprego, meus pais, meus avós, eu mesmo; todos eternos e perde-los não estava no escript. O trabalho de luto é aprender a dizer sim, tanto para a vida, quanto para a morte; para os ganhos e para as perdas.

Vida Breve

Uma vida não é senão um breve instante na eternidade, independente do quanto dura esse instante, é imprescindível que seja bem vivido, do contrário, a vida será um hiato, um vazio sem sentido. Dentro de cada vida, muitas outras vidas perfilam, vidas que a todo instante deixam de ser, deixam de existir, porque outras estão à espera. E cada finalização dessas breves existências, nos trazem o luto e sua conseqüente e necessária elaboração. Este que nos possibilita o desapego, a libertação de uma das mortes de nossa vida, para que novas possam nascer.

Aquele morreu quando estava para aproveitar a vida, desgostoso por ter sido tão breve e pouco vivida, ouve-se o comentário. Sendo assim, o que se lê é: aquele nunca aproveitou a vida! Sua existência correu rápida e descolada de si mesmo, e dela, não se aproveitou ou pouco se aproveitou. E porque até então não se pôde aproveitar? Por certo temos aqui a ausência do bem viver, portanto a dificuldade em morrer. Dificuldade, porque achamos que a vida não foi suficiente, queríamos mais, pois não nos sentimos preenchidos.

Este morreu feliz, conseguiu realizar seus sonhos. Portanto, este morreu completo, e talvez com uma morte bem aceita. Quando vivemos mal, a morte nos tira a vida, e a perda é vista como um roubo. Quando vivemos bem, a morte é apenas o último estágio da vida, a perda pode até deixar um vazio, mas não a revolta, não o sofrimento sem tréguas. Este por certo, perceberá que a vida continua, mesmo após uma perda ou morte. E na eminência do próprio fim, se liberta por si mesmo da vida que tanto lhe proporcionou, e sendo ele sabedor deste fim, parte tranqüilo e sereno.

“A morte só nos tomará o que quisermos possuir”, dizia Sponville, e Freud complementa: “não sabemos renunciar a nada. Apenas sabemos trocar uma coisa por outra”. E isso, a realidade pode nos dar. Posso amar outros, ser outro, ter outros. Constantemente travamos uma luta entre nossos desejos, amores ou posses, e a realidade – os impedimentos para alcançarmos tudo o que queremos – Muitas vezes, o real é mais forte, e perdemos essa briga.

O luto pode acontecer tanto do que tínhamos e perdemos, como: emprego, empresa, casamento e morte de um ente querido. Quanto do que esperávamos ter, mas que até o momento não conseguimos, como uma promoção, o carro que não conseguiu comprar, uma paixão que nunca foi correspondida ou ganhar o prêmio na loteria. E tão maior for nosso apego ao que temos ou ao que poderíamos ter, tão maior será o sofrimento caso perdemos. Elaborar o luto é se libertar do desejo, quando ele não pode ser realizado. Isso não serve para dizer que não devemos correr atrás de nossos sonhos, ou viver intensamente nossas paixões e que não devemos empreender nosso máximo para conseguir, mas sim, para dizer que a vida continua apesar de não ter conseguido. Acredite, o mundo é generoso.

A dor do luto

O luto como já dito, carrega em si a dor, viver é estar em constante luto e elaboração do mesmo. Essa elaboração é a ponte que nos leva da dor ao prazer. Luto é aprendizagem, é experiência. O luto nos torna humanos, que sabemos, somos mortais. Portanto, a morte é nossa fiel amiga e não podemos fugir dessa fidelidade. Ela pode ser ludibriada, se postergada, atrasada, mas nunca deixará de vir ao nosso encontro, como disse ela é fiel e cumpre o que promete, cedo ou tarde. Ela nunca deixa de estar presente, para nos mostrar como num espelho, nosso corpo a todo tempo desnudado pelo real. O real é a própria morte, são as perdas, os fracassos, as decepções, as frustrações, as amputações do desejo. Entretanto, o real nos pega mesmo a contra gosto, e por vezes nos mostra exatamente o contrário, que tudo tem um fim, que tudo isso não passa de um conto de fadas. O castelo de cartas cai por terra. Dor, sofrimento, luto.

A elaboração do luto é a aceitação da realidade tal como ela é, nua e crua. É aprender a viver com a ausência, com uma perda, buscando algo novo que nos vá preencher. Nunca é claro, o mesmo preenchimento, apenas um novo. O luto é da morte, não da vida. O que morre são partes de nós, o todo continua vivo. Assim como, a cada dia milhares de células morrem em nosso corpo, porém, milhares nascem para manter o todo nas melhores condições possíveis, e pelo maior tempo possível.

Distância próxima

Se a morte, ou a finitude de tudo é o que de mais certo termos, porque não a aceitamos como natural? Será a consciência do eterno? De que somos imortais? De que vivemos como se nunca fossemos morrer? De que a morte só ocorre com o outro? As explicações se multiplicam. De alguma forma fugimos desesperadamente da dor, porém, vez ou outra inevitavelmente caímos em seus braços como presas indefesas. Indefesos porque não somos preparados para as “armadilhas” da vida, para as perdas e mortes. Porque a dor é evitada desde cedo em nossa educação, e vem sendo cada vez mais evitada, pelos pais, pela escola, mídia, ciência, etc.

Quanto mais conhercemos algo, mais teremos controle. Quanto mais nos conhercemos, mais senhores de nós mesmos seremos. Com a dor não é diferente, e na medida em que entramos em contato, conhecemos, com isso, mais facilmente com ela lidaremos. Como ao longo dos tempos vem se criando um distanciamento da dor, da morte, quando acontece nos amedronta, nos machuca a porto de perdermos o sentido da vida, a ponto da morte do outro nos matar.

A elaboração do luto está diretamente ligada à ideologia do ter para ser. Se para ser teremos que ter, quando perdemos, deixamos de ser. Isso nos causa dor, isso nos tira a identidade, nos anula, e o gosto da morte permanece, porque é como se nós mesmos tivéssemos morrido.

Eu só era alguma coisa porque tinha minha mãe, meu marido, meu emprego, meu carro, meu dinheiro. Perdeu-se a identidade, então nos sentimos sozinhos e enfraquecidos para aceitar, mesmo o que já era previsto. Claro poderá ter vindo num momento inesperado. Morreu quando recebeu alta no hospital; morreu jovem, ia para uma festa; me deixou logo agora quando estava tudo bem; agora que eu ia receber uma promoção fui demitida. Tanto a morte quanto às perdas são imprevistas, mas isso também é sabido.

Ouvimos a fala, a vida é breve, posso sair daqui agora e ser atropelado. Amanhã poderei não mais estar aqui. Temos a consciência da brevidade e da incerteza, porém não a vivemos, não a aceitamos enquanto possibilidade real, por isso sofremos, por isso o luto não é elaborado. Somos apenas teóricos da morte, da perda. Na prática, só a vida, só os ganhos, apenas o que permanece é bem aceito. A verdade é que esses modelos extrapolam para os diferentes campos de atuação. Não vivemos o que pensamos ou desejamos, vivemos o que as circunstâncias nos levam a viver e por elas somos comandados, como se as circunstâncias não pudessem ser mudadas.

A vida nos treina para a morte todos os dias, pequenas e grandes perdas, algumas mais fáceis de serem elaboradas, outras mais difíceis. A vida nos dá essas possibilidades, porém nossos modelos de educação e educadores, fazem o possível e o impossível para evitar que entremos em contato. Desta forma, enquanto tivermos alguém para nos proteger viveremos bem, mas talvez fracos. Quando dependermos apenas de nós mesmos, a dor será inevitável e tomará proporções fantasiosas, abrindo feridas que não cicatrizarão tão facilmente, gerando sofrimento. Assim, a morte não trará ensinamentos, e nada será, além do fim. A vida perde o sentido, a vida pára, e o indivíduo vive porque rumina um passado encantado. Um passado onde ela ainda estava “inteira”, aparentemente sem perdas.

A impressão é que a todo o instante as pessoas precisam ser enganadas, e clamam por isso. É preferível que a verdade seja camuflada, esteja envolvida pelo mel da retórica para que assim possa ser digerida com tranqüilidade, caso contrário, a verdade é repelida como a um ladrão insaciável. E a metáfora é propositalmente aqui colocada, porque a impressão é que a verdade pode lhe roubar algo que lhe pertence. Com isso, aprendemos a não falar o que deve ser falado, mas sim, o que o outro quer ouvir. Uma notícia de morte é cercada de inúmeros cuidados e precaução, dependendo do grau de dependência ou da forma que este lida com tais situações. Sim deve se ter cuidados, a questão é que se perde ai uma grande oportunidade de ensinar e aprender, sobre as perdas da vida. Se este não consegue lidar com a morte, como elaborará o luto? Morremos não só pelo fato de nosso coração parar de bater, morremos também por viver como se a morte não fizesse parte da vida, porque paramos no tempo, no tempo em que a perda ainda não havia acontecido.

O vocabulário é vasto, porém as palavras não são suficientes para reparar uma perda, é preciso vive-la. Perante a dor somos iguais. É certo sentir dor, é certo chorar e até mesmo sofrer, assim como também é certo continuar vivendo. Numa relação de amor, a perda sempre causará dor, devemos experimentar essa dor. Sim, ela é minha e agora a conheço e na próxima perda a reconhecerei, e dela me fortalecerei. Uma dor breve, como breve foi a existência do que perdi, como breve é minha vida, que por mais breves que sejam os momentos felizes, que possam ser muitos. Já disse Sêneca, “não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos”. Portanto, aproveitemos o máximo nosso tempo. Será a vida breve, ou nós é que assim a fazemos? Será que a vida nos falta ou a esbanjamos sem critérios? A vida é como um negócio, como um pedaço de terra onde se pode plantar. Alguns, quando estão de posse destes, fazem produzir e colhem muitos frutos, enquanto outros no mesmo lugar, nada produzem além da decepções.

O bem viver nos falta, e por isso nos agarramos desesperadamente em pedaços de vida, como famintos a uma migalha de pão. Ora, quando o que temos são migalhas, e nada além, ah! então precisamos repensar nossa existência, buscando novas fontes, novas possibilidades. O que é pior: morrer ou viver como se estivesse morto? Morrer é natural, viver com ausência de vida, não. Tal pessoa morreu, nada podemos contra a morte, portanto que vivamos a favor da vida.

Gratidão na morte

Diante da morte do outro nos entristecemos, sofremos e choramos, não pelo morto, mas por nós mesmos, pela falta que ele nos fará. Se pensarmos que a morte é o nada, é o vazio absoluto, pelo o que choramos?  Se pensarmos no vazio que a morte trouxe, pelo o que choramos? Para a primeira questão talvez não haja solução, pelo fato de não termos acesso. Para a segunda, a simples aceitação de que um vazio foi deixado, porque o outro ocupava sim um espaço dentro de nós, mas apesar disso, continuamos vivos. E o que nos conforta, é que o outro teve seu instante na eternidade e fez a diferença enquanto existia. Mas que o nosso instante ainda não acabou, e clama por ser bem aproveitado.

É sábio aquele que elicia lembranças felizes do que foi. É sábio e ao mesmo tempo feliz, aquele que agradece o que, ou quem o influenciou para estar onde está. Tudo o que não é, um dia pode ter sido, e por isso, fez parte de nossa vida. Todas as nossas perdas, mortes, fracassos, frustrações e decepções, fazem parte deste hall a ser agradecido.

Tudo é uma questão de escolha: o sofrimento da perda do que um dia foi, o pesar por aquilo que nunca aconteceu, ou, a lembrança feliz do que foi, do amor que por um tempo preencheu de sentido nosso viver. À que se ter gratidão pelo passado. Nem a morte, nem qualquer outra possibilidade que potencialmente pode nos enlutar, é capaz de anular o que já aconteceu, o que vivemos. A gratidão nos faz regozijarmos com doces lembranças, nos liberta do que está por vir e ilumina o que está sendo. Claro está, que não queremos ressuscitar o passado, nem tão pouco anular o sofrimento do luto. A gratidão é o remédio que pode cicatrizar as feridas abertas pela vida, pelas perdas da vida.

A elaboração do luto não é a extinção do sofrimento, nem tão pouco a gratidão se prestaria a isto. “Trata-se de passar da dor atroz da perda, à doçura da lembrança”, dizia Sponville. Ou seja, a própria gratidão, “que bom que você existiu em minha vida”, “que bom eu ter ganhado esse presente”, “que bom eu ter te amado e tu me amado”. Elaborar o luto: aceitar o real e continuar, viver apesar de tudo. Gratidão: lembranças doces, alegrias e amor.

Referências Bibliográficas

FRANKL, V. E. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo, Editora Quadrante, 1989.
SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. São Paulo. Nova Alexandria, 1993.
SPONVILLE, A. C. Bom dia, angústia! São Paulo, Martins Fontes, 1997.
__________, Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, São Paulo, Martins Fontes, 2000.

 Artigo publicado na Revista Psicologia Brasil
Nº 15 - Novembro de 2004.

 *Odair José Comin, Psicólogo, Hipnoterapeuta e Escritor 

(OBS: Encontrei esse artigo no perfil da Fátima Corga no Facebook)

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